Em 24 de março, o deputado federal Jean Wyllis, do PSOL-RJ, protocolou,
na Câmara, o Projeto de Lei nº 882/2015 que pretende que a interrupção da
gravidez possa ser realizada no Brasil, independentemente da motivação, nas
doze primeiras semanas de gestação, tanto pelo SUS quanto pela rede privada. Na
prática, o projeto visa legalizar o aborto no Brasil.
É importante discutir a legalização do aborto para além das situações já
admitidas em lei (risco de vida da gestante e gravidez decorrente de estupro) e
nos tribunais (fetos com má formação, como os anencéfalos). Recomenda-se que o
debate sobre o tema procure evitar fundamentalismos e crenças exageradamente
arraigadas e apaixonadas, priorizando-se uma visão laica e plural. Contudo,
vale indagar se o comportamento irascível e sectário que observamos muitas
vezes na mídia entre os detratores da legalização se restringe a estes. Vale
também refletir se todos os argumentos contrários à legalização da prática são irracionais
e desprovidos de fundamento científico, frutos apenas de posições arcaicas advindas
de arrazoamentos religiosos ou da opressão de gênero exercida contra a mulher e
a sua liberdade sexual.
Propõe-se aqui que diversos argumentos contrários ao aborto possuem
legitimidade e embasamento científicos e que as iniciativas de galvanizar as
discussões a partir de perspectivas religiosas ou de gênero nada mais são do
que estratégias discursivas habilmente utilizadas, muitas vezes, por defensores
da legalização da prática. A finalidade de boa parte dessas pessoas é óbvia: clivar
a discussão radicalmente, posicionando-se no pólo aparentemente progressista e
humanitário e reservando a seus adversários o incômodo estigma de
“fundamentalistas”, “reacionários”, “machistas” e “indiferentes ao sofrimento
das mulheres”. Um breve e não-exaustivo exame de alguns dos argumentos do
discurso pró-aborto é suficiente para demonstrar uma série de debilidades e
incoerências.
O primeiro argumento (e provavelmente mais comum) produzido pelos
defensores da legalização do aborto é o de que a proibição é inútil,
uma vez que, a despeito dela, as mulheres continuam e continuarão a
recorrer sistematicamente à prática. A proibição beneficia apenas as mulheres
com mais poder aquisitivo que possuem condições de pagar clínicas clandestinas,
mas confiáveis, enquanto milhares de mulheres mais humildes sofrem todos os
anos em verdadeiros “açougues” sem a mínima qualificação e condições de
assepsia, arriscando suas próprias vidas. Não há dúvida de que essa é a triste
realidade brasileira, mas é correto pensar no aborto como panaceia para
corrigir ou atenuar problemas sociais?
O que se deve frisar é que só faz sentido tipificar uma conduta como
crime porque ela ocorre. Não faria nenhum sentido prever como crime uma conduta
fantasiosa, ou seja, que jamais se produz ou se produzirá no mundo real. A lei
não visa eliminar a prática, mas coibi-la. Estendendo-se o argumento da
incapacidade latente do Estado brasileiro para combater o aborto para outros
crimes, seríamos obrigados a concordar com a legalização de todas as práticas
ilícitas (tipos penais) que julgamos que estão sendo insatisfatoriamente enfrentadas
pelo Poder Público. Nada disso, porém, significa que não se deva rediscutir a
absurda possibilidade de uma mulher que recorreu ao aborto ser condenada a uma
pena restritiva de liberdade, na hipótese da prática continuar a ser
considerada ilegal. Mulheres que recorrem ao aborto não devem ser tratadas com
o rigor de um homicida comum. Muito menos vistas como pessoas que merecem ser retiradas do convívio social. Penas alternativas, com a prestação de serviços
à comunidade – em orfanatos e creches, por exemplo –, além de mais humanas, são proporcionais à natureza do ato delituoso.
Outro argumento bastante comum é o de que a decisão sobre praticar ou não
o aborto diz respeito exclusivamente à mulher e ao uso que faz de seu próprio
corpo. Ocorre que o feto não é um órgão do corpo
feminino. Claro, a mulher abriga o feto em seu útero e uma gravidez bem
assistida é indispensável para bom desenvolvimento da gestação, mas o
fato de as mulheres engravidarem é uma condição imposta pela natureza. Querer
culpar Deus, a natureza ou qualquer outra “entidade” por isso não modificará
essa realidade. Mas o fato de serem as mulheres as que engravidam não faz delas senhoras
absolutas dos destinos dos fetos. Os fetos não são seus bens. São seus futuros
filhos, novos seres humanos em formação. Uma mulher pode se julgar onipotente
para decidir o destino do seu filho? Tem o direito de desempenhar esse papel,
por mais desamparada que se encontre? E quem detém autoridade para determinar
ou sugerir que só podem nascer filhos de mulheres inseridas em um ambiente
familiar saudável, maduras psicologicamente e com boa situação financeira? O
que há de humanista nessa pretensão, que seria ingênua em seu idealismo, não
fosse o autoritarismo subjacente, além da arrogância que encerra por querer
legar à mulher a prerrogativa de decidir a priori o destino do seu filho, mesmo
que indesejado? Filhos de mulheres pobres estão condenados, após o nascimento, a
viver e morrer pobres? E os de mulheres desamparadas ou mães solteiras estão
fadados à infelicidade? Nenhum deles merece chances? Quem tem autoridade para negá-las?
Há que se ressalvar que a maior parte das mulheres
brasileiras é contrária à legalização do aborto, assim como há muitos homens
favoráveis. Portanto, querer enviesar a discussão sobre a legalização do aborto
por uma perspectiva litigiosa de gênero é um artifício decorrente de uma
mentalidade simplista, preconceituosa e machista, segundo a qual cabe ao homem
só se preocupar com o trabalho e sustento da família e as mulheres com a
educação dos filhos e a casa. O homem não pode opinar na gestação da mulher ou
sua opinião deve ser considerada secundária: é um mero "boi reprodutor".
Sim, infelizmente ainda são muito comuns os casos de mães abandonadas por seus
companheiros, mas há também pais amorosos (não são tão raros assim) que
querem acompanhar com atenção e carinho suas mulheres na gestação (mesmo não
planejada) e se dedicar à criação dos filhos que geraram. Na hipótese da mulher
decidir abortar e o homem querer criar seu filho porque a voz da mulher deve
prevalecer? Vale invocar um argumento biológico para ignorar a voz do pai? Não
seria mais generoso então a mãe entregar o filho ao pai para que ele o crie?
Nem toda mãe tem vocação materna, é fato. Por que não deixar que a criação
fique a cargo do pai? É no mínimo incoerente que mulheres engajadas na
legalização do aborto e que se julgam modernas, feministas ou não, recorram, quando
lhes aprouve, aos arquétipos masculino e feminino que dizem rejeitar na maior
parte do tempo para justificar o primado da mulher sobre o homem quando o que
está em jogo é a decisão sobre o destino do filho de ambos.
Finalmente, há ainda o argumento de que os empenhados contra
a legalização do aborto são, sem exceção, fundamentalistas religiosos e obscurantistas.
Não é difícil encontrar católicos, evangélicos e adeptos de outras religiões favoráveis
ao aborto. Assim como há ateus e agnósticos contrários. Portanto, bem como
ocorre com a questão de gênero, priorizar a discussão a partir de uma
perspectiva religiosa é uma estratégia propositadamente utilizada pelos favoráveis
à legalização da prática para viciar, de forma artificial, um tema muito mais complexo
e profundo e criar vilanias. Angariar simpatias e apoio da opinião pública é
mais fácil quando se polariza um debate entre o “bem” e o “mal”, colocando-se,
obviamente, no primeiro pólo. Há que se sublinhar: os que são contrários ao
aborto não são, necessariamente, inimigos da mulher e indiferentes aos
sofrimentos que muitas delas passam. Pelo contrário, não seria ousadia dizer
que a maioria é solidária às mulheres. Só não concorda com que o aborto seja
uma resposta aceitável para sanar ou amenizar suas eventuais mazelas.
A discussão sobre a legalização do aborto no Brasil só
tem a ganhar se admitido, por todos os lados envolvidos, que o que se deve
buscar, antes de tudo, é o equilíbrio sadio entre as dignidades fundamentais da
mulher e do feto. Quando a balança deve pender para um ou outro lado? O viés do
debate deve ser laico, moral e humanista. Tem a mulher o direito de interromper
a gestação, em qualquer situação? Em caso positivo, até qual momento? Mesmo ateus e agnósticos admitem que interromper uma gestação em estado avançado é
inadmissível. Deduz-se daí que, independentemente de se professar ou não um
credo, se reconhece o valor da vida intra-uterina (ou de parte dela). Em países
onde o aborto é universalmente admitido, as leis divergem quanto ao teto máximo
para a interrupção da gravidez (embora, em muitos, a 12ª semana de gestação
seja o limite estabelecido), o que é um sinal claro de que ainda não há certeza
na comunidade científica internacional quanto à fração exata do tempo em que se
inicia a vida. O que existe somente é um razoável consenso sobre quando começa
a formação do sistema neurológico. Quaisquer inferências a partir daí ainda são
problemáticas. Reflitamos, pois, sobre esses e outros pontos, desviando-nos dos
sectarismos presentes no caminho, em todas as frentes.