segunda-feira, 6 de abril de 2015

DEBILIDADES E INCOERÊNCIAS NO DISCURSO PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO

Em 24 de março, o deputado federal Jean Wyllis, do PSOL-RJ, protocolou, na Câmara, o Projeto de Lei nº 882/2015 que pretende que a interrupção da gravidez possa ser realizada no Brasil, independentemente da motivação, nas doze primeiras semanas de gestação, tanto pelo SUS quanto pela rede privada. Na prática, o projeto visa legalizar o aborto no Brasil.
É importante discutir a legalização do aborto para além das situações já admitidas em lei (risco de vida da gestante e gravidez decorrente de estupro) e nos tribunais (fetos com má formação, como os anencéfalos). Recomenda-se que o debate sobre o tema procure evitar fundamentalismos e crenças exageradamente arraigadas e apaixonadas, priorizando-se uma visão laica e plural. Contudo, vale indagar se o comportamento irascível e sectário que observamos muitas vezes na mídia entre os detratores da legalização se restringe a estes. Vale também refletir se todos os argumentos contrários à legalização da prática são irracionais e desprovidos de fundamento científico, frutos apenas de posições arcaicas advindas de arrazoamentos religiosos ou da opressão de gênero exercida contra a mulher e a sua liberdade sexual.
Propõe-se aqui que diversos argumentos contrários ao aborto possuem legitimidade e embasamento científicos e que as iniciativas de galvanizar as discussões a partir de perspectivas religiosas ou de gênero nada mais são do que estratégias discursivas habilmente utilizadas, muitas vezes, por defensores da legalização da prática. A finalidade de boa parte dessas pessoas é óbvia: clivar a discussão radicalmente, posicionando-se no pólo aparentemente progressista e humanitário e reservando a seus adversários o incômodo estigma de “fundamentalistas”, “reacionários”, “machistas” e “indiferentes ao sofrimento das mulheres”. Um breve e não-exaustivo exame de alguns dos argumentos do discurso pró-aborto é suficiente para demonstrar uma série de debilidades e incoerências.  
O primeiro argumento (e provavelmente mais comum) produzido pelos defensores da legalização do aborto é o de que a proibição é inútil, uma vez que, a despeito dela, as mulheres continuam e continuarão a recorrer sistematicamente à prática. A proibição beneficia apenas as mulheres com mais poder aquisitivo que possuem condições de pagar clínicas clandestinas, mas confiáveis, enquanto milhares de mulheres mais humildes sofrem todos os anos em verdadeiros “açougues” sem a mínima qualificação e condições de assepsia, arriscando suas próprias vidas. Não há dúvida de que essa é a triste realidade brasileira, mas é correto pensar no aborto como panaceia para corrigir ou atenuar problemas sociais?
O que se deve frisar é que só faz sentido tipificar uma conduta como crime porque ela ocorre. Não faria nenhum sentido prever como crime uma conduta fantasiosa, ou seja, que jamais se produz ou se produzirá no mundo real. A lei não visa eliminar a prática, mas coibi-la. Estendendo-se o argumento da incapacidade latente do Estado brasileiro para combater o aborto para outros crimes, seríamos obrigados a concordar com a legalização de todas as práticas ilícitas (tipos penais) que julgamos que estão sendo insatisfatoriamente enfrentadas pelo Poder Público. Nada disso, porém, significa que não se deva rediscutir a absurda possibilidade de uma mulher que recorreu ao aborto ser condenada a uma pena restritiva de liberdade, na hipótese da prática continuar a ser considerada ilegal. Mulheres que recorrem ao aborto não devem ser tratadas com o rigor de um homicida comum. Muito menos vistas como pessoas que merecem ser retiradas do convívio social. Penas alternativas, com a prestação de serviços à comunidade – em orfanatos e creches, por exemplo –, além de mais humanas, são proporcionais à natureza do ato delituoso.
Outro argumento bastante comum é o de que a decisão sobre praticar ou não o aborto diz respeito exclusivamente à mulher e ao uso que faz de seu próprio corpo. Ocorre que o feto não é um órgão do corpo feminino. Claro, a mulher abriga o feto em seu útero e uma gravidez bem assistida  é indispensável para bom desenvolvimento da gestação, mas o fato de as mulheres engravidarem é uma condição imposta pela natureza. Querer culpar Deus, a natureza ou qualquer outra “entidade” por isso não modificará essa realidade. Mas o fato de serem as mulheres as que engravidam não faz delas senhoras absolutas dos destinos dos fetos. Os fetos não são seus bens. São seus futuros filhos, novos seres humanos em formação. Uma mulher pode se julgar onipotente para decidir o destino do seu filho? Tem o direito de desempenhar esse papel, por mais desamparada que se encontre? E quem detém autoridade para determinar ou sugerir que só podem nascer filhos de mulheres inseridas em um ambiente familiar saudável, maduras psicologicamente e com boa situação financeira? O que há de humanista nessa pretensão, que seria ingênua em seu idealismo, não fosse o autoritarismo subjacente, além da arrogância que encerra por querer legar à mulher a prerrogativa de decidir a priori o destino do seu filho, mesmo que indesejado? Filhos de mulheres pobres estão condenados, após o nascimento, a viver e morrer pobres? E os de mulheres desamparadas ou mães solteiras estão fadados à infelicidade? Nenhum deles merece chances? Quem tem autoridade para negá-las?
Há que se ressalvar que a maior parte das mulheres brasileiras é contrária à legalização do aborto, assim como há muitos homens favoráveis. Portanto, querer enviesar a discussão sobre a legalização do aborto por uma perspectiva litigiosa de gênero é um artifício decorrente de uma mentalidade simplista, preconceituosa e machista, segundo a qual cabe ao homem só se preocupar com o trabalho e sustento da família e as mulheres com a educação dos filhos e a casa. O homem não pode opinar na gestação da mulher ou sua opinião deve ser considerada secundária: é um mero "boi reprodutor". Sim, infelizmente ainda são muito comuns os casos de mães abandonadas por seus companheiros, mas há também pais amorosos (não são tão raros assim) que querem acompanhar com atenção e carinho suas mulheres na gestação (mesmo não planejada) e se dedicar à criação dos filhos que geraram. Na hipótese da mulher decidir abortar e o homem querer criar seu filho porque a voz da mulher deve prevalecer? Vale invocar um argumento biológico para ignorar a voz do pai? Não seria mais generoso então a mãe entregar o filho ao pai para que ele o crie? Nem toda mãe tem vocação materna, é fato. Por que não deixar que a criação fique a cargo do pai? É no mínimo incoerente que mulheres engajadas na legalização do aborto e que se julgam modernas, feministas ou não, recorram, quando lhes aprouve, aos arquétipos masculino e feminino que dizem rejeitar na maior parte do tempo para justificar o primado da mulher sobre o homem quando o que está em jogo é a decisão sobre o destino do filho de ambos.
Finalmente, há ainda o argumento de que os empenhados contra a legalização do aborto são, sem exceção, fundamentalistas religiosos e obscurantistas. Não é difícil encontrar católicos, evangélicos e adeptos de outras religiões favoráveis ao aborto. Assim como há ateus e agnósticos contrários. Portanto, bem como ocorre com a questão de gênero, priorizar a discussão a partir de uma perspectiva religiosa é uma estratégia propositadamente utilizada pelos favoráveis à legalização da prática para viciar, de forma artificial, um tema muito mais complexo e profundo e criar vilanias. Angariar simpatias e apoio da opinião pública é mais fácil quando se polariza um debate entre o “bem” e o “mal”, colocando-se, obviamente, no primeiro pólo. Há que se sublinhar: os que são contrários ao aborto não são, necessariamente, inimigos da mulher e indiferentes aos sofrimentos que muitas delas passam. Pelo contrário, não seria ousadia dizer que a maioria é solidária às mulheres. Só não concorda com que o aborto seja uma resposta aceitável para sanar ou amenizar suas eventuais mazelas.
A discussão sobre a legalização do aborto no Brasil só tem a ganhar se admitido, por todos os lados envolvidos, que o que se deve buscar, antes de tudo, é o equilíbrio sadio entre as dignidades fundamentais da mulher e do feto. Quando a balança deve pender para um ou outro lado? O viés do debate deve ser laico, moral e humanista. Tem a mulher o direito de interromper a gestação, em qualquer situação? Em caso positivo, até qual momento? Mesmo ateus e agnósticos admitem que interromper uma gestação em estado avançado é inadmissível. Deduz-se daí que, independentemente de se professar ou não um credo, se reconhece o valor da vida intra-uterina (ou de parte dela). Em países onde o aborto é universalmente admitido, as leis divergem quanto ao teto máximo para a interrupção da gravidez (embora, em muitos, a 12ª semana de gestação seja o limite estabelecido), o que é um sinal claro de que ainda não há certeza na comunidade científica internacional quanto à fração exata do tempo em que se inicia a vida. O que existe somente é um razoável consenso sobre quando começa a formação do sistema neurológico. Quaisquer inferências a partir daí ainda são problemáticas. Reflitamos, pois, sobre esses e outros pontos, desviando-nos dos sectarismos presentes no caminho, em todas as frentes.